sábado, 21 de novembro de 2009

^^ Sonhos e memórias.^^

^^ Sonhos e memórias.^^


Em uma pequena e pacata cidade no interior do estado de São Paulo, sentados em um banco de madeira todo pintado de branco, que ficava num belo e extenso jardim abarrotado de flores, os dois amigos passavam horas conversando durante todas as tardes que restavam de suas vidas. Aquele lugar era uma clínica de repouso para idosos.

Otávio de Vicente, sentiam na pele a monotonia daquelas tardes quentes, então, ficavam conversando e recordando seus passados; hora algum assunto alegre, hora outro assunto triste e assim iam vivendo.

----Otávio, alguma vez, mesmo estando com muitas pessoas por perto, você chegou a se sentir sozinho?

----Como assim, Vicente?

----Ora...sentir como se você estivesse sozinho neste mundo de DEUS!

----Sim, Vicente. Na minha vida sempre deram certo as coisas que eu queria. Eu sempre estava em meio à festas, rodeado de mulheres, amigos...mas, de repente me batia uma solidão esquisita e eu tinha uma certa nescessidade de estar sozinho comigo mesmo; via uma ou outra pessoa e parecia que elas pertenciam ou estavam em outro mundo, e eu ali...com aquela sensação de estar só em todo o mundo. Então, tive tudo, mulheres, dinheiro até para jogar para o alto ...mas, no mundo existem muitas pessoas más e hoje estou aqui nesta clínica, abandonado, ninguém vem me visitar, não tenho filhos e a única pessoa da minha família que me restou é o meu sobrinho, este que me deixou aqui um dia e nunca mais voltou.

----Pois é Otávio, ele te trouxe para cá e sumiu com toda a sua fortuna, isto é que é ser candango com o próprio tio, e tem mais, mesmo que a gente esteja no melhor lugar do mundo, nada se compara com o nosso cantinho não é mesmo?!

----Vicente, conte mais um pouco da sua historia, mas comece tudo de novo por que da última vez que você contou eu acabei pegando no sono e já esqueci tudo, hehehe.

Esta bem, respondeu o amigo.

----Vicente...Levanta menino, o galo já até cantou e você tem que ir para a roça. Vai menino, deixa de ser preguiçoso, avie, antes que seu pai se zangue com tu, meu fio, vá e tome seu café.

Vicente tinha apenas sete anos de idade quando já tinha que trabalhar na roça seca para ajudar os pais e os seus oito irmãos. Os grandes iam com ele para a roça e os pequenos ficavam em casa e faziam algum serviçinho aqui, outro ali, enquanto a mãe costurava e lavava roupas para fora para ajudar nas despesas.

O pai por outro lado so fazia beber e maltratar a esposa e os filhos. A mãe de Vicente chamava os filhos bem cedinho enquanto coava o café ralo que era a única refeição que aquelas pessoas ingeriam de manhã. Todo o dinheirinho que entrava na família mal dava para o sustento deles, e naquela época a seca no nordeste era tremenda, tinham uma vaquinha tão magra que mais parecia uma caveira ambulante, já não tinha muitos dias de vida; o chiqueiro estava vazio e quando o pai de Vicente percebeu que não adiantava mais criar galinhas, matou-as para comerem; afinal, não tinham nem como tratar delas.

A mãe de Vicente andava longe para lavar as roupas de encomendas no único riacho que tinha na redondeza, enquanto os filhos pequenos ficavam sozinhos em casa, naquela época, os maiorzinhos cuidavam dos menores.

O pai de Vicente tinha ido para uma de suas andanças, de quando em quando ele sumia no mundo e quando voltava dizia que tinha saído à procura de trabalho; so que sempre voltava pior do que quando tinha saído. Magro, barbudo, sujo e sem nenhum dinheiro. Quando ele estava em casa, brigava muito, as vezes quebrava as poucas coisas que tinham; maltratava as crianças. Vicente, em seu íntimo, ficava revoltado e pensava; “um dia eu vou embora daqui.”

----Oh, nuvem; linda nuvem...O que DEUS prepara para mim? Olhe bem na minha cara nuvem, e me diga!

Eu ainda vou ser um homem rico, pensava. Vicente as vezes ficava horas e horas deitado de barriga para cima lá em cima de um morro que tinha pelas bandas da roça. Do lado de baixo um pé de coquinhos fazia sombra para aquele menino sonhador, do outro lado so as gramas secas faziam parte do cenário em baixo daqueles arames que nem ele mesmo sabia por que estavam lá, afinal, nem tinham gado para ultrapassar aquelas cercas.

De quando em quando, um gavião passava lá no alto, no céu azul e ele dizia, vai urubu, conversa aí com a minha amiga nuvem e diz para ela mandar um ventinho aqui para baixo, i a pois que ta muito calor.

As vezes à noite Vicente ia lá para aquele morro e ficava um bom tempo sozinho deitado de barriga para cima observando as estrelas brilhantes e se sentia como que flutuando em um gigantesco mar coalhado daquelas luzes que o fascinavam . De repente a mãe gritava para ele descer embora e que ali era assombrado, para ir dormir.

----Vicente, meu filho; que tanto você fica naquele morro, por que gosta tanto? Perguntou a mãe.

----Não, mainha; é que eu gosto de conversar com a nuvem e as estrelas ...elas falaram para mim que ainda vou ser um homem muito rico e que não vou mais saber o que é sentir fome e que vou aprender um montão de coisas e vou ser inteligente, com uma casona e um monte de coisas gostosas para comer.

----Oxe, menino; tu deve de ter sonhado. Vai dormir vai, descansar por que amanhã tem que trabalhar, né. Dizendo isto o levou para a cama e deu a benção ao menino e se pôs a pensar em como Vicente era sonhador.

Vicente acordou no meio da noite com seu irmão menor chorando e sua mãe com ele no colo e tentava lhe dar um remédio pois ardia em febre. Por estes tempos o pai não estava em casa, a irmã mais velha ajudava a mãe a cuidar do menino colocando compressas na testa dele. E aquilo varou noite a dentro e Vicente acabou dormindo novamente, com a luz da lamparina que bruxuleava fazendo sombras pelas paredes de barro de sua casa.

Quando acordou, Vicente estranhou pois não foi a mãe que o chamou e sim o irmão maior que ele; levantou-se de sua caminha de puro pau forrado com panos grossos que a mãe remendava sempre e com os pés no chão que apesar de ser de barro, era muito limpo, saiu andando...os cabelos desarrumado, a blusinha que vestia curta demais para ele e que já tinha passado da hora de dar para o irmão menor...entre eles era assim, o maior ia passando suas roupas que não serviam mais para os menores...coçou a cabeça, espreguiçou; então ouviu um chorinho e foi ver de que se tratava . Levou um susto; em cima de uma mesa estava o irmãozinho dele esticado e com velas acesas pelos lados, algumas pessoas estavam ali próximas de sua mãe...as tres irmãs ao lado da mãe choravam mas ela não derrubava uma lágrima sequer; so seu olhar vagava perdido pelas paredes daquela pequena casinha. Vicente foi chegando perto e olhou o irmão morto...saiu devagar e se foi lá para seu morro predileto. Deitado no chão de barriga para cima se perguntava por que as pessoas morriam, estava triste, mas, ainda não tinha discernimento de que nunca mais iria ver o irmão pequeno, mas, no coração dele sentia uma tristeza profunda. Viu uma pequena nuvem e perguntou a ela por que seu irmão tinha morrido, mas ela não respondeu e continuou seu caminho.

Vicente estranhou que durante o velório de seu irmãozinho muitos choravam, so a sua mãe que não, então perguntou para uma senhora que estava por perto, por que as pessoas choravam; e ela respondeu que era por que o irmãozinho dele tinha ido para o céu morar com DEUS e não voltaria mais.

----Mas por que meu irmão morreu?

----É que ele tinha muitas lombrigas e estava com vontade de comer alguma coisa e como não comeu, passou mal e foi para o céu. Respondeu a senhora idosa.

Daquele momento em diante, aquele menino pobre, com uma vida miserável tomou uma decisão que seguiria por toda sua vida; nunca mais passaria fome. Decidiu que iria embora para cidade grande e iria trabalhar muito e ganhar muito dinheiro e voltaria para buscar a mãe e os irmãos.

No outro dia de manhã cedinho a mãe o chamou para ir trabalhar. Ele já tinha planejado tudo. Fingiria que ia trabalhar na roça como fazia todos os dias mas, no meio do caminho enganaria seus irmãos e fugiria. E foi isso que fez.

Vicente andou, andou e andou. Aquela estrada de terra não acabava nunca , e aquele sol escaldante...o menino sentia sede e fome e cansaço nas perninhas. De repente chegou em uma vila. Já era tarde, e ele bateu na porta de uma casa, uma senhora idosa veio atender e quando ela abriu a porta, Vicente caiu desmaiado aos pés daquela senhora. Ela o levou para dentro da casa e cuidou dele, o alimentou quando melhorou e ele adormeceu novamente.Então aquela bondosa senhora pensou consigo mesmo...”amanhã eu vejo quem é este menino tão bonito e o devolvo para os pais, além do mais, já esta tarde, não tenho como sair por ai procurando a família dele, e nem deve ser de perto, pois nunca o vi por estas bandas...”

De manhã quando Vicente levantou, a mesa do café já estava posta, com várias iguarias que ele jamais tinha visto em toda a sua vida, comeu de tudo um pouco até se fartar e depois conversou com aquela senhora bondosa que o acolheu em sua casa até mesmo sem saber quem ele era, mas, confiou.

Ela pediu que ele não abandonasse a família e que ela o ajudaria, mas ele estava determinado a correr o mundo para melhorar de vida. Aquela senhora olhava para o garoto e pensava: “como um menino deste tamanhinho quer correr o mundo para ganhar dinheiro e mudar a sorte de sua família, isto não vai dar certo, ele é muito novinho e vai sofrer por este mundo a fora.”

Aquela casa de alvenaria era bem aconchegante e tinha um belo jardim todo abarrotado de flores de todas as qualidades, no fundo do quintal havia um pequeno pomar com vários tipos de árvores frutíferas, horta e muitas flores. Vicente até gostaria de morar ali caso não tivesse já desenhado em sua mente todo plano de ficar rico e para isso teria que ir para uma cidade grande e trabalhar muito, aquele povoado era de pessoas simples, que já tinham feito o que deveriam em suas vidas, trabalhado tudo o que precisaram e agora so descansavam.

A senhora chamou o vizinho da casa da frente no outro lado da rua e pediu a ele que levasse Vicente para casa e mandou alguns sacos de alimentos para a família dele.

Como o garoto era bastante determinado, ensinou direitinho o endereço da casa dele para o homem e conseguiu escapar enganando aquele homem enquanto ele colocava os mantimentos na camionete e ficou espreitando até que viu que aquele homem foi para o lado de sua casa. Certamente que ele chegaria lá e explicaria para a sua mãe que ele tinha resolvido correr mundo a procura de trabalhos melhores e que voltaria para buscar toda a sua família quando estivesse bem, além do mais, aquele homem estava levando alimentos e ele sabia que por uns tempos eles teriam o que comer e também aquela senhora bondosa tinha prometido ajudar a mãe dele.

Com a conciência mais em paz, ficou na beira da estrada esperando algum carro passar para pedir carona. Já era tarde quando passou um caminhão e ele entrou.

----Nossa moço, ainda bem que você me deu beira, eu já não estava mais agüentando ficar ali naquele solão e ninguém passava...

----Para onde você esta indo menino? Perguntou o caminhoneiro intrigado e ao mesmo tempo receoso por ter dado carona para uma criança.

----para qualquer lugar, mas tem que ser um lugar bem grande para eu poder trabalhar de dia e de noite até eu ficar rico.

O caminhoneiro torceu o canto da boca e disse:

----Menino, você esta sonhando muito alto, a vida não é tão fácil assim como pensa, além do mais você ainda é um pirralho. E nestas cidades grandes tem muito bandido, se você não tomar cuidado ainda te pegam para as bandidagens deles como o tráfico de drogas e você acaba se drogando e morando no meio da rua dentro de sargetas e passando fome, sede e frio. Tome muito cuidado com estes seus planos. E os teus pais, onde estão, eles sabem que você esta indo embora?

Terminando de falar o caminhoneiro fez um retorno e já ia voltando para levar o garoto de volta de onde o pegou.

----Não moço, não me leve de volta pelo amor de DEUS. O meu pai caiu no mundo, é um bêbado e a minha mãe é muito pobre, tenho um monte de irmãos, eu so quero trabalhar e ganhar dinheiro de verdade para poder ajudar a minha mãezinha e meus irmãos. Não me leve de volta por favor.

O caminhoneiro viu lágrimas nos olhos do menino e se compadeceu dele e disse:

----Bom, menino; você é quem sabe, não sei por que , mas eu acredito no que você esta me contando...so por isso não vou te deixar aqui, mas te digo, tome muito cuidado; nas ruas você so aprende o que não presta, cuidado com drogas, com roubos, e procure sempre andar no caminho do bem, nunca roube ninguém; é melhor pedir do que roubar . E que DEUS o ajude.

No caminho, Vicente contou toda sua vida para aquele homem que já tinha se tornado seu amigo.

----Sabe, garoto...voce é um menino muito bacana viu, se continuar assim, Papai do céu vai te ajudar sim, e acho que quando te deixar já vou sentir sua falta, hehehe

Pararam em um posto e enquanto o frentista abastecia o caminhão com diesel e verificava o óleo, Vicente e o caminhoneiro comeram sanduíches saborosos e beberam refrigerantes, era a primeira vez que Vicente tomava refrigerante e nem sabia abrir a garrafa. Tudo aquilo era novidade para aquele menino corajoso.

Depois de comerem seguiram viagem, o garoto dormiu a noite toda com o barulho da estrada em seus ouvidos, aquilo para ele era música, liberdade, estava sumindo no mundo, ia conhecer tantas coisas e assim foi sonhando com seu futuro.

Acordou com o caminhoneiro chamando por ele pois tinham chegado e agora ele iria descarregar a carga e teriam que se despedir.

O clima da despedida foi triste pois aquele caminhoneiro representava tudo que o menino deixou para trás quando entrou em seu caminhão, e aquilo se tornou um vínculo entre passado e futuro que ele enfrentaria, agora já estava em outra cidade, pessoas novas, tudo novo e ele não conhecia ninguém, não tinha nada...tudo aquilo era algo que o desafiava, o sangue corria em suas veias como um foguete, olhava tudo e nada via, sentia medo e alegria ao mesmo tempo.

----Que DEUS lhe abençoe por ter me ajudado a chegar até aqui moço, tomara que algum dia a gente se encontre quando eu for rico.

----Olha garoto não esqueça dos conselhos que te dei, seja sempre honesto e DEUS vai te ajudar, olha, vou te dar esse dinheirinho para você comer, não é muito, mas vai ajudar; e virando aquela esquina ali tem um bar, vai lá coma algo e diga para o dono que fui eu que te mandei lá e que você precisa de um lugar para ficar e quer trabalhar, fala que foi o Zezão que te mandou lá. Vai com DEUS garoto.

Vicente viu no canto dos olhos do amigo uma bolinha de lágrima, e sentiu um aperto no coraçãozinho, mas , seguiu em frente, fez conforme Zezão tinha explicado e depois de comer, perguntou ao dono do bar se ele tinha como ajuda-lo a arrumar um trabalho.

O dono do bar olhou para Vicente, aquele muleque magrinho de cabelos todo desgrenhados, sardas no rosto e desnutrido...coçou a barba, pensou um pouco e depois perguntou:

----Como é seu nome menino?

----Vicente, senhor. É que eu estou aqui para arrumar um trabalho para ajudar a minha mãezinha e meus irmãos que ficaram no sítio.

----E sua mãe sabe que você esta procurando trabalho por aqui, Vicente?

----Sabe sim senhor. Respondeu o garoto mentindo. Na mesma hora lembrou dos conselhos do amigo caminhoneiro, mas logo pensou que se falasse a verdade, o homem não lhe ajudaria a arrumar um trabalho e decidiu manter a mentira, pensou que depois não mentiria mais.

----E o que você sabe fazer? Pelo seu tamanho não deve saber muito ainda, não é?!

----Olha senhor, qualquer serviço que me mandarem fazer eu faço, a não ser que não queiram pagar pelo meu trabalho, aí não trabalho mesmo.

O dono do bar gostou da resistência do garoto e disse que o homem que entregava leite ali naquele bar estava precisando de uma pessoa para ajuda-lo no sítio e que talvez Vicente fosse muito novo para este trabalho, mas, que ia ver se conseguia o trabalho para ele. Vicente agradeceu e ficou de passar lá depois, mas, ao mesmo tempo pensava que não lhe agradara, pois tinha saído de um sítio para ir para cidade grande e agora talvez teria que ir para outro sítio...

À tarde o menino passou no bar para ver se tinham novidades para ele mas, o dono do bar mandou ele voltar no outro dia cedo pois, naquele dia o leiteiro não tinha aparecido por lá, achava que estava com algum probleminha lá no sítio pois nunca faltava.

Aquela noite foi terrível para Vicente, ele teve que dormir no chão da porta de um comércio e de madrugada deu uma boa esfriada e sua barriga doía de fome, sem contar, os barulhos que o incomodava, afinal, aquele lugar era bem diferente de sua casa e do sítio seco.

Quando o homem do bar abriu as portas, Vicente já estava lá esperando para saber do trabalho, o homem com pena dele chamou-o para uma mesa e serviu um café com leite quente e pão.Depois trouxe roupas do filho dele para Vicente, o garoto ficou todo feliz com as roupas novas. Quando o leiteiro chegou, o dono do bar conversou com ele e expôs a situação de Vicente e o rapaz o contratou mais por pena dele do que por nescessidade; achava que o garoto não serviria para o trabalho que realmente tinha para oferecer, o colocaria para fazer alguns trabalhinhos aqui outros ali...so para dar uma oportunidade ao garoto, algo leve.

Vicente agradeceu o dono do bar e disse que nunca esqueceria o que ele tinha feito. Quando eles se foram, o dono do bar ficou pensando em como aquele garoto tão pequeno tinha idéias de gente grande...e tão corajoso,

Quando chegaram ao sítio Vicente já se sentiu em casa, so que naquele lugar havia muita diferença de onde ele morava com a sua família, ali tinha bastante verde, quase não se via sinal de seca, o gado eram gordos e saudáveis, pelo meio do sítio corria um rio forte e bonito, e as pessoas eram todas sadias. Neste momento lembrou de sua família que deixou para trás, sua mãe tão magra, seus irmãos também muito magrinhos e com a barriga grande de vermes, o contraste ali era grande, sentiu saudade e tristeza.

No mesmo dia já começou a trabalhar; dava comida para os animais, ajudava na retirada do leite, carpia a horta e assim, ia levando a vida. Na hora do almoço, Nhá Tina o chamava e enchia o prato dele de guloseimas e ele se empanturrava de tanto comer, já tinha até ganho uns quilinhos desde que chegou.

Nhá Tina era a cozinheira do sítio, era uma negra velha encorpada e de cabelos que já estavam ficando brancos, porém, sempre muito bem penteados, era muito asseada e gostava de estar sempre arrumada e também cozinhava como ninguém; fazia comida para todo o sítio e ainda sobrava tempo para contar os causos de assombração para a criançada, e Vicente sempre ali no meio deles, ele já tinha se tornado o protegido de Nhá Tina; as vezes ele chorava por sentir saudade da família e lá ia a velha negra para o consolar, afinal, ele era ainda um menino pequeno.

Passaram-se seis meses e Vicente estava para completar oito anos, Nhá Tina preparou um bolo muito gostoso para ele e chamou a criançada do sítio para comemorarem o aniversário do seu protegido Vicente.

Naquele dia Euzébio, o filho do dono do sítio estava passeando por lá, ele morava na cidade e as vezes ia para o sítio passar uns dias quando não tinha aulas.

Euzébio não foi com a cara de Vicente e bem na hora de cantarem os parabéns a Vicente o garoto fingiu que tropeçou em algo e derrubou o bolo de aniversário no chão, todos ficaram chateados menos Euzébio que saiu rindo, mas; Nhá Tina fez outro bolo muito mais bonito e gostoso que o primeiro para o aniversariante. O pai de Euzébio passou um sabão nele e ainda o levou de volta para a cidade de castigo.

Naquele dia de seu aniversário Vicente teve uma surpresa. Depois de terminar seu trabalho foi dar umas voltas pelo meio das árvores do sítio, pelos morros e pastos, entrou por um caminho paralelo ao rio que corria o sítio e foi andando e planejando o que iria fazer dali adiante, já tinha completado mais um ano de vida e estava quase se tornando um homenzinho, precisava traçar suas metas então, resolveu que todo o dinheiro que recebesse, guardaria com Nhá Tina e quando tivesse o suficiente, buscaria sua família no norte para morar com ele.

De repente uma forte luz se aproximou dele que ficou imediatamente paralisado de medo.

___Não tenha medo Vicente. Disse aquela luz em forma de ser humano para o garoto. Você possui uma inteligência um tanto quanto maior que as outras crianças de sua idade, isto é um presente que você recebeu e por isso vai usá-la para o bem a sua vida toda. De hoje em diante você terá muita sorte mas, terá que fazer por merecer, terá que estudar e trabalhar normalmente pois é do suor que se ganha o pão, porém, tudo o que você tocar e em todo o trabalho que você investir terá sucesso e poderá ficar rico; terá tudo o que desejar, desde que seja uma pessoa honesta, uma pessoa caridosa, que ajude os menos afortunados, enfim; você terá que ser uma pessoa do bem.

___Qual é o seu nome? Perguntou o garoto ao ser iluminado.

___Eu me chamo Cill.

Nossa, você tem um nome diferente, né. Disse o garoto, já um mais íntimo daquele ser que estava à sua frente.

___Vicente; toda vez que precisar de mim, estarei por perto. Você foi um dos escolhidos por ter um bom coração, pela fé que alimenta a alma e pelo respeito com o Supremo Criador.

___Mas como faço para falar com você Cill?

___Basta chamar. Respondeu aquele ser, se despedindo-se dele com aperto de mão e logo a seguir se foi floresta adentro com uma velocidade de uma estrela cadente.

Vicente voltou para jantar pois Nhá Tina já devia estar preocupada com ele.

Aquela noite o garoto custou a dormir, não parava de pensar no que havia lhe acontecido naquela tarde.

Passaram-se mais de um ano e Vicente continuava trabalhando naquele sítio, todos por ali gostavam muito dele, mas; ele sentia que já estava na hora de partir para novas conquistas. Um dia Nhá Tina estava sentada em uma cadeira de balanço que tinha na área da sala e conversava com o garoto, e ele disse a ela que iria partir e contou o que tinha lhe acontecido no dia de seu aniversário no outro ano. Ela riu e comentou que então ele deveria mesmo seguir seu rumo para que melhorasse de vida; ali no sítio era bom, mas, poderia melhorar ainda muito mais se ganhasse a estrada, arrumando um trabalho que ganhasse mais e que também poderia estudar para ser alguém na vida pois ela achava que o estudo era mágico e se ele aprendesse esta arte poderia ser o que desejasse na vida, pois so quem estuda se torna alguém respeitado.

Vicente concordou com Nhá Tina e prometeu que viria visitá-la sempre que pudesse.

Na semana seguinte Vicente foi embora.

Arrumou suas coisas que nem eram tantas; Nhá Tina preparou lanche para ele comer no caminho e o abençoou e com o dinheiro do trabalho dele, pegou um ônibus que o levaria para uma cidade grande.

Viajou um dia inteiro e uma noite, quando chegou ao seu destino que tinha escolhido a dedo no mapa da rodoviária, já estava amanhecendo.

Como não tinha bagagem, pegou sua malinha e foi comer algo em uma lanchonete da mesma rodoviária em que desembarcou. Vicente não tinha freqüentado escolas, mas o filho de um dos funcionários do sítio onde esteve todos aqueles meses o tinha ensinado a soletrar alguma coisa, então em pé e comendo o seu lanche ele soletrou uma plaquinha que estava pendurada na parede da lanchonete: “precisa-se de ajudante, tratar aqui.”

Na mesma hora ele já perguntou para o moço que o atendeu, e disse que precisava trabalhar e que tinha acabado de chegar na cidade.

O rapaz o olhou meio que não acreditando muito que aquele pivete poderia levar a sério o trabalho, mas; mesmo assim, chamou o dono da lanchonete para conversar com o garoto.

Vicente contou que desde menino já trabalhava na roça e que tinha trabalhado também no sítio, o dono da lanchonete respondeu que ele poderia preencher a vaga mas, tinha que saber pelo menos ler para poder atender os clientes. Vicente não contou que nunca estivera dentro de uma sala de aula, então o homem perguntou ao garoto onde que ele estava morando e ele disse que ainda teria que encontrar um lugar para ficar, estava preocupado pois onde iria àquela hora da noite para dormir, tomar um bom banho, se nem conhecia aquela cidade ainda.

O dono da lanchonete se chamava Alfonso e vendo que o garoto não tinha onde ficar, deixou que ficasse lá até arrumar uma pensão para morar afinal, ali tinha banheiro que o menino poderia tomar seus banhos, tinha uma caminha de campanha que seu Alfonso mesmo usava quando dava muito movimento na lanchonete e ficava tarde para ir para casa pois morava em uma cidadezinha próxima dali.

Então Vicente ficou um bom tempo trabalhando e dormindo naquela lanchonete, Yago era um rapaz que trabalhava lá também, ele é quem fazia quase tudo pois Vicente ainda era um tanto quanto franzino, por isso o rapaz tinha pena dele e o ajudava, os dois ficaram muito amigos. Yago descobriu que Vicente era analfabeto e o aconselhou a arrumar um lugar para morar e que começasse a freqüentar uma escola, pois enquanto estivesse dormindo na lanchonete não teria espaço para escola, sempre acabava enrrolando com o serviço, o próprio Yago se prontificou a ajudar o garoto a encontrar uma pensão familiar para morar.

Quando encontraram o lugar, Yago ficou responsável por Vicente e o garoto se mudou para lá, em questão de dias todos naquela casa já tinham Vicente como alguém da família, ele era um garoto muito carismático, sempre gentil com todos; a dona da pensão dona Nega já o tratava como um filho, e no final não estava nem querendo mais receber dele por ele morar em sua casa; claro que o garoto aceitou esta oferta, afinal era um dinheirinho a mais que ele poderia guardar para quando fosse buscar sua família no norte. Naquele mesmo ano Vicente entrou na escola e estava indo muito bem.

Em seus aniversários, dona Nega fazia sempre uma festinha para ele e convidava todos os que moravam na pensão para parabenizar Vicente e nestas ocasiões ele lembrava mais ainda de Nhá Tina que foi a primeira pessoa que lhe fez um bolo de aniversário e também de sua mãe e seus irmãos.

Vicente estava agora com treze anos e continuava a freqüentar a escola e a trabalhar. Agora estava ficando cada vez mais difícil os estudos pois a cada ano que se passava ia complicando as matérias e ele não gostava muito de matemática, resolveu que ia fazer alguns cursos também e se inscreveu num curso de taquigrafia.

Quando ele voltava da escola já era um pouco tarde e um dia, ele vindo pelas ruas da cidade, numa esquina alguns rapazes conversavam e riam alto. Quando Vicente passou perto deles, um entre eles pulou na frente do garoto e começou a provoca-lo dizendo que ele era um bocó, que era feio e que ao invés de ir namorar alguém feio como ele ficava estudando como um otário. Vicente ficou incomodado com aquilo mas, não respondeu nada, não era chegado em brigas. Um dos rapazes deu um chute nas costas de Vicente e ele caiu, a sorte é que ele já estava perto da pensão e dona nega quando ouviu o barulho foi lá fora para ver o que estava acontecendo e escorraçou os meliantes de lá e levou o garoto para dentro de casa, quando ele entrou ela verificou se ele tinha se machucado por causa do chute que havia levado e começou a conversar com ele.

___Vicentinho meu filho; quando esses moleques de rua mexer com você não dê bola não, vem direto para casa, deixe eles falando sozinhos, estes garotos não prestam; não trabalham e nem estudam; ficam o dia inteirinho pelas ruas como vândalos. Enquanto que você não meu filho; sempre trabalhando, estudando; você é diferente deles Vicente.

___Eu sei tia Nega. Respondeu o garoto. Eu não fiz nada para eles, me cercaram e começaram a me maltratar dizendo que eu sou feio, que eu não tenho namorada e ainda me chamaram de boiola.

___Esqueça isto Vicente, não ligue para eles, fique longe destes malcriados, agora vai descansar , amanhã você tem que trabalhar, né...

Quando dona Nega falou isso com Vicente , na mesma hora ele lembrou de sua mãe, era assim que ela falava com ele, e sentiu grande saudades de sua família, foi até a janela de seu quarto e pensou em como estava fazendo falta um morrinho para ele deitar de barriga para cima e conversar com as estrelas e as nuvens, lembrou-se de Cill e também em como gostaria de já estar em condições para ir buscar sua família...como será que estaria sua mãe e seus irmãos?

Vicente estava gora com quinze anos e já tinha uma quantia boa guardada em sua poupança, mas, ainda não dava para buscar a sua família , é que ele queria comprar uma casinha para eles morarem e para isso faltava muito ainda, então começou a pensar que teria que arrumar um trabalho que pagasse melhor, agora já tinha estudos e cursos e continuaria estudando até se formar na universidade.

Yago convidou Vicente para ir com ele e uma turma de amigos a uma festa em um sítio que seu cunhado trabalhava e morava, Vicente aceitou.

No sábado à tarde foram para lá. Dona nega recomendou muito a Vicente para tomar cuidado , para não beber nada de álcool, e também não ficar andando em matas fechadas para não se perder por lá.

Quando Vicente chegou no sítio se sentiu em casa; aquele lugar era meio parecido com o sítio onde havia trabalhado, aquele que tinha a Nhá Tina...Tudo ali lhe fazia recordar, aquele povo do sítio em que fora feliz, a sua família, enfim, até de Cill.

Enquanto Yago ajudava a irmã e o cunhado a preparar a festa,